Leituras seletas sobre temas controversos para exercitar os neurônios!

 

ARGUMENTOS DE AUTORIDADE

 

Ismar Pereira Filho

 

Sempre esteve em moda o argumento de autoridade. Você sente que não está convencendo e, no desespero, cita uma autoridade. Pode ser um especialista, um erudito, um religioso, um livro sagrado. Claro que, quanto mais conhecida e respeitada a autoridade, mais fácil persuadir alguém.

 

Costumamos dobrar-nos a argumentos de autoridade, pois há muito abdicamos de nossos neurônios, os quais reservamos para problemas menores, para bobagens. Afinal, quem sou eu para argumentar contra opinião tão ilustre? – costuma ser a nossa atitude. Esquecemo-nos de que, por mais badalada que seja uma autoridade, sua opinião ainda precisa passar pelo crivo do bom senso de qualquer cachola.

 

Até na ciência o argumento de autoridade prevalece sobre fatos científicos. Pelo menos por uns tempos. Louis Pasteur foi chamado de babaca pela comunidade científica da época, por rejeitar a teoria “científica” da geração espontânea. Pasteur sustentava que as coisas criavam bicho porque já estavam contaminadas por micróbios tão diminutos que não podiam ser vistos pelo olho humano. Enquanto não surgiu o microscópio, Pasteur não passou de piada entre os colegas sabichões.

 

As ciências sociais constituem, por excelência, o reino encantado das autoridades. O que há de sociólogo, antropólogo, economista maria-vai-com-as-outras pelo mundo afora é brincadeira. De mau gosto. O que vale, nesse reino, é saber citar autoridades e depois comentá-las em linguagem empolada e embolada. E fazê-lo sem a devida vergonha. Não seria razoável esperar que, após pagar mestrado, doutorado e pós-doutorado tão caros, os pobrezinhos fossem levar bomba. Afinal, educação é, sobretudo, um negócio. Reprovar é péssimo marketing.

 

Economia, então, é um Deus-nos-acuda. Como qualquer ciência social, a Economia está especialmente sujeita aos interesses das classes dominantes. Mais do que isso, está sujeita aos interesses dos países dominantes. E como o nosso verdadeiro deus é o Dinheiro, é de bom alvitre esperar, daquela que já se chamou Economia Política, muito mais política do que economia. Entre a verdade científica e os interesses pecuniários dos grandes, nenhuma verdade tem a menor chance.

 

Contaminada assim por interesses escusos, tanto de classes sociais quanto de países dominantes, não admira que papo de economista seja a confusão que é. Falar a verdade, em economia, é politicamente incorreto. Viu o que aconteceu com o sr. Amartya Sem, economista dedicado ao estudo das causas da pobreza? Quase morre como ilustre desconhecido, se não precisassem, urgente, de um economista politicamente incorreto para o prêmio Nobel de 1998. Sintomaticamente, nem se fala mais no homem.

 

Se o argumento de autoridade sempre predominou sobre todos os demais – exceto, talvez, sobre o argumentum baculinum (argumento do cacete), que é mesmo de lascar – deve haver boa razão para tal. E há mesmo.

 

Além de ser cansativo argumentar com fatos e raciocínio lógico, é também desaconselhável quando a intenção é persuadir para dominar. É aí que entram os argumentos de autoridade, os sofismas, as mentiras. Um Mestre resumiu todo o relacionamento humano com o famoso “enganando e sendo enganados”.

 

Eis um argumento de autoridade que passa no crivo de quaisquer neurônios.

 

 

 

 

A REVOLTA DOS "POBRINHOS"

Ismar Pereira Filho


Meu filho foi assaltado pela primeira vez com apenas oito anos. Meninos maiores do que ele arrebataram-lhe a bola de futebol. Moravam numa barraca de lona preta, em terreno baldio da Asa Norte, em Brasília. Um deles deu-lhe ainda um bom chute. Meu filhote passou, então, a temer e a odiar "pobrinhos".

Certa noite sonhou que uma multidão de pobrinhos chegava a nosso prédio para matá-lo. Ele correu para a portaria, com os pobrinhos em seu encalço. Mas eis que do nada surge um herói: o papai aqui entrou no pesadelo dele com força total. Eu dava golpes de Kung Fu pra todo lado e era só pobrinho que voava. Subimos a escada com os pobrinhos nos perseguindo e eu distribuindo generosos tabefes. Mas como pesadelo é pesadelo, quanto mais pobrinhos o Hong Kong Fu Pai derrubava, tanto mais pobrinhos apareciam. Entramos no apartamento, mas não conseguimos fechar a porta, e logo os pobrinhos entupiam todos os espaços. Já iam destroçar nossa família, quando os gritos de desespero da mãe e da irmã acordaram o meu filhote. Foi como nos salvamos da fúria dos pobrinhos.

Meu filho passou dias falando em como odiava pobrinhos. Achei que precisava dizer a ele alguma coisa capaz de evitar que preconceito tão grave se lhe instalasse de vez no coração. Só não sabia o quê. Que poderia dizer a um menino assustado, a quem o mundo encarregara-se de dar uma pequena mostra dos perigos que nos rondam por toda parte? Pensei, pensei e pensei. Conversa mole de perdoar, seria inútil. Já imaginou um menino frágil, intimidado, roubado e chutado, perdoar agressores que nem sequer estavam arrependidos? Se Deus, que é Deus, só perdoa quando o cabra safado se arrepende e pede perdão... (Pelo menos, é o que dizem certos livros e certas pessoas.)

Criança é diferente de adulto. Criança não engole conversa fiada. Resolvi ter com ele uma conversa franca, de homem para homem.

Disse-lhe que, se era verdade que não maltratávamos ninguém, também era verdade que nada fazíamos pelos excluídos. Nunca tínhamos ido à barraca deles para saber se precisavam de alguma coisa, se sentiam frio à noite, se tinham comida. Jamais havíamos sequer pensado neles. Nunca havíamos tido por eles nenhuma consideração. Como exigir que tivessem consideração por nós? Vivíamos como se eles nem existissem. Eles agora nos pagavam na mesma moeda. Não seria justo pedir que fossem melhores do que nós, pagando nossa indiferença com bondade e consideração. Eles não ligavam a mínima para nós porque não ligávamos a mínima para eles.

É altamente improvável que algum dia renunciemos a nosso egoísmo extremado para abraçar a fraternidade universal. Nem a era de Aquário nem nada conseguirá demover cada um de nós da posição que julga merecer no universo: bem no centro. Muito mais provável é que nos afoguemos uns aos outros no aquário, em nossa eterna briga pelo melhor lugar.

Será que não poderíamos, pelo menos, adotar o altruísmo como norma de conduta? Altruísmo, na prática, é só uma forma inteligente de egoísmo. É saber que, para garantir-nos o máximo de bem estar, precisamos cuidar do bem estar de todos, mesmo que isso signifique abrir mão de privilégios.


Estamos carecas de saber que deixar esse assunto só com a classe política é o mesmo que ignorá-lo completamente. Os políticos refletem também nossos desinteresses. Quando votamos em partidos elitistas, estamos dizendo aos políticos que a pobreza dos outros não nos interessa. Quando votamos em ladrões – não importa de que tipo de partido – estamos dizendo que honestidade é coisa de otários, que não nos interessa.

 

Boas políticas públicas podem mudar a vergonhosa realidade do Brasil, pois isso já aconteceu noutros países. A França de hoje já foi também o país vagabundo de Maria Antonieta. Tenho esperança? Não, nenhuma. Mas que há possibilidade, mesmo remota, de que os mais safados venham a dar lugar aos menos safados, até que os honestos sejam regra e os desonestos, exceção, ah! isso há.

 

É bom que isso não demore demais para acontecer, pois os "pobrinhos" já estão às portas de todas as bastilhas. Eles são bilhões em todo o mundo. E seu número, sua impaciência, sua inveja, sua raiva só fazem crescer.
Logo, logo, não será possível acordar do pesadelo.  

 

COMPETIÇÃO VERSUS  COOPERAÇÃO

 

Ismar Pereira Filho

Não é sem motivo que somos tão confusos. Desde a mais tenra idade, somos confrontados com a necessidade contraditória de sermos egoístas (competitivos) e também bonzinhos (cooperativos).  Logo percebemos a enrascada em que nos meteram.  Às vezes, somos premiados por ser competitivos;  outras, somos repreendidos.  Quando resolvemos ser cooperativos, uns nos louvam, enquanto outros nos chamam de mané, bocó, babaca, otário  – a lista de vocativos que dão aos que preferem a cooperação à competição parece não ter fim.

Competição significa que alguns ganham e outros perdem, que alguns são bem sucedidos e outros fracassam.  Significa também que todos ficam infelizes, até os que ganham, pois nada garante que não se transformem em perdedores logo mais adiante.  Isso não lhe parece uma forma imbecil de organização humana?  Mantemo-nos em estado de guerra.

Uma sociedade humana baseada na competição é como um carro no atoleiro, o qual é empurrado para a frente e para trás ao mesmo tempo. A turma mais forte acaba levando o carro para onde deseja que vá, é claro. Mas não seria bem menos estressante todos empurrarem na mesma direção?  Alguém tido como divinamente sábio já disse que uma casa dividida contra si mesma não tem como se dar bem.

A competição é animal, é a lei do mais forte e do mais apto em ação. Vemo-la na natureza.  Quem pode mais chora menos.  O mundo vegetal e animal, destituído de inteligência ou tendo-a em medida apoucada, não conhece nada melhor.  Mas mesmo aí há exceções – leguminosas e rizóbios, por exemplo, vivem em fraternal simbiose, felizes para sempre.

Até o menos inteligente de nós, entretanto, conhece a excelência da cooperação.  Intuitivamente sabemos estar no caminho certo quando ajudamos e somos ajudados.  Os mutirões, tanto nos roçados quanto nas cidades, patenteiam a excelência da cooperação. Não há perdedores. Todos saem ganhando.

Por que, então, insistimos na competição? Por que, então, só mui raramente cooperamos?

Somos ensinados, em casa, na escola e por toda parte, a admirar e buscar a superioridade.  Nossos pais exigem que sejamos superiores aos meninos da vizinhança.  Precisamos vencer no jogo, na briga.  Na escola somos admirados quando conseguimos notas altas, quando somos os primeiros colocados;  e ridicularizados ou ignorados quando as notas são baixas.  Ser iguais não basta.  Precisamos ser superiores.  Precisamos ganhar medalhas.  Estamos em eternas Olimpíadas.

“Yo no soy mariñero, soy capitán!”  Lembra-se dessa música?  Ninguém quer ser marinheiro; todos querem ser capitães.  E o resultado é que todos viramos “capetões”.

Veja a situação do homem pobre, feio e sem cultura.  Querendo ser alguém, que é que ele faz?  Toma uns goles para ficar valente e trata de arranjar briga.  Se não pode se destacar de outro modo, procura destaque sendo brigão.  Ou passa logo para o mundo da marginalidade, que não deixa de ser uma forma de destaque.  Com isso pode conseguir alguma forma de respeito e  "ser alguém".

Os belos ideais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –continuam no papel.  A idéia era substituir a divisão social de nobreza, clero e povão pela República, na qual aqueles ideais seriam concretizados.  Fracassamos.  Continuamos a buscar superioridade  – mais ricos, mais bonitos, mais famosos, mais fortes, mais rápidos, mais inteligentes, mais cultos, mais espertos, mais malvados, mais santos, mais ...   E o que conseguimos?  Basta olhar ao redor.  Fome, miséria, inveja, ressentimento, ódio, tristeza, violência, insegurança.

Esse imperativo de superioridade, passamo-lo às nossas organizações, instituições, empresas, países.  Em vez da inteligente cooperação (um pelo outro), optamos pela burra competição (um péla o outro).  Será que ainda podemos sair dessa fria?

 

DIREITO DE MORRER 

 (Texto publicado no Diário de Sorocaba on-line, na coluna  Matutando com Ismar Filho, em 15/07/1998)

Ismar Pereira Filho

 

O direito à morte é tão sagrado quanto o direito à vida. Não abro mão do direito de pôr fim à minha vida quando bem me aprouver. Entretanto, esse direito elementar, óbvio, ainda não é reconhecido em nossa legislação.

O projeto do Novo Código Penal  quer permitir a ortotanásia (morte de acordo com a natureza) e continuar proibindo a eutanásia (boa morte). A primeira, ortotanásia, seria aplicada a doentes terminais cuja vida dependesse de meios artificiais. Com o consentimento dos familiares e parecer médico favorável (à morte, é claro), aparelhos seriam desligados e medicação, suspensa.  Inconsciente, o doente não opinaria. Já no segundo caso, a eutanásia, o paciente suplica a ajuda do médico e dos familiares para morrer, mas não é atendido. Quem atender às súplicas do enfermo cometerá homicídio.

Acho tudo isso muito estranho e ridículo. Parece que o legislador não quer acatar, por pura birra, a vontade do doente ainda consciente. Quando o coitado, já inconsciente, fica impossibilitado de meter o bedelho na própria vida, seu caso passa a ser de ortotanásia. Aí, sim, quando já tiver sofrido tudo que a sociedade hipócrita exigir que sofra, médicos, familiares e juízes poderão decretar o fim de sua vida. Se isso não é tortura, então o que é tortura?

Francamente! Que sadismo mais perverso é esse, que nega ao principal interessado o direito de decidir sobre a própria vida? Os religiosos dizem que Deus concedeu livre arbítrio ao homem, mas são os primeiros a desrespeitar essa dádiva. Deus dá, mas os engraçadinhos tolhem... em nome de Deus! Deve haver alguma lógica nisso, talvez a dos imbecis.

Quer a sociedade proteger a vida? Corrija as deficiências dos hospitais públicos. Garanta alimentação adequada a todos os pobres e desempregados. Ponha bandidos na cadeia. Prenda policiais homicidas. Tire das vias públicas motoristas loucos. Leve saneamento básico e educação higiênica a todos os recantos do País. Mas não negue o direito de morrer a quem não deseja viver.

Imagine-se paralítico do pescoço para baixo. Você tem todo direito de continuar vivendo assim, se quiser. Mas tem também o sagrado direito de exigir uma boa morte (eutanásia), caso não veja sentido nesse tipo de vida. Seus familiares poderiam, digamos, por uns três meses, tentar convencê-lo a continuar vivo, providenciar psicólogos, padres, pastores, espíritas e até o diabo, para convencê-lo de que a vida sempre vale a pena. Se você se convencer, tudo bem. Mas, não se convencendo, lei alguma deveria impedi-lo de morrer sem mais sofrimento.

Alguns grupos religiosos arrogam-se o direito de imprimir, nas leis nacionais, suas convicções e dogmas. Não têm respeito por aquela parte da população que reza por outra cartilha. Sociedades democráticas devem manter-se alertas contra tais ingerências da tirania religiosa. Não pode o Estado legislar para certos grupos, em detrimento de outros. Dogmas religiosos devem circunscrever-se aos limites dos grupos que os aceitam. Queremos aperfeiçoar nossa capenga democracia; não transformá-la em teocracia (na prática, governo de fanáticos).

Assim como qualquer pessoa saudável tem o poder de suicidar-se a qualquer momento, até por estar enfarada da vida, ninguém deveria meter-se a besta de impedir um doente terminal ou um tetraplégico de morrer. E sem muita burocracia, por favor. A qualquer tempo, burocracia é uma desgraça. No sagrado momento da morte, a presença de burocratas é sacrilégio, é abominação. Bastaria, diante de umas tantas testemunhas confiáveis, fazer algum sinal diante de um cartaz com a frase: PRA MIM, CHEGA!”

 


 
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